Presidente da Funai, ativistas e especialistas relembram 500 anos de luta e resistência indígena no Brasil

 Presidente da Funai, ativistas e especialistas relembram 500 anos de luta e resistência indígena no Brasil

No lugar de uma vaga celebração da figura da pessoa indígena, surge a rememoração sobre luta e resistência dos Povos Indígenas brasileiros (Divulgação/Associação Kanindé)

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Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – Há 80 anos o Brasil vem celebrando a diversidade cultural dos povos originários. Oito décadas que se completam, exatamente, nesta quarta-feira, dia 19 de abril. O ano era 1943, quando o ‘Dia do Índio’ entrou para o calendário de datas comemorativas – mas não como um feriado nacional. Desde então, muita coisa mudou em torno da dita ‘comemoração’, especialmente o significado e a nomenclatura dela: no lugar de uma vaga celebração da figura da pessoa indígena, como se o sangue dos primeiros – e originalmente – brasileiros nunca tivesse sido escravizado ou derramado por colonialistas, surge a rememoração sobre luta e resistência dos Povos Indígenas

novo termo, definitivamente mais adequado e respeitoso, como defendem especialistas, mas que nem todo mundo aprendeu a usar corretamente ainda, é reconhecido pelo governo federal, neste dia e, pela primeira vez, em 2023. “Mas nem toda vez foi assim”, como lembra a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)Joenia Wapichana

“Ano passado, por exemplo, o calendário colocava como o ‘dia do índio’. Através de um Projeto de Lei de minha autoria [hoje em vigor], a Lei 14.402, essa terminologia de ‘índios’ é alterada para Povos Indígenas, resgatando a nossa dignidade, a nossa identidade, reconhecendo a diversidade dos povos que existem no Brasil”, detalhou Wapichana, em declaração enviada à REVISTA CENARIUM

Este avanço, por mais que singelo – entre um dos muitos ainda almejados – é inegável. Por outro lado, especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em dizer que ainda há muito no que investir para progredir. Eles avaliam os primeiros 100 dias do novo Governo Lula em termos de políticas públicas para os povos das florestas.

Lei de autoria da ex-deputada federal e atual presidente da Funai, Joenia Wapichana, reconhece 19 de abril como Dia dos Povos Indígenas (Divulgação/Associação Kanindé)

Tardio reconhecimento

Primeira indígena a presidir a Fundação, a ex-deputada federal pelo Estado de Roraima faz questão de destacar a pluralidade indígena brasileira e o quanto essa riqueza não cabe dentro do termo ‘índio’, que, ao contrário disso, é carregado de preconceito e discriminação. 

“São mais de 305 povos, diferentes culturas e 274 línguas faladas. Essa diversidade cultural não é um povo, apenas. São vários povos. É importante que a gente identifique o avanço nesse reconhecimento como reafirmação de direitos”, afirmou a presidente da Funai.

Para acompanhar a mudança, o próprio órgão mudou de nome: antes era Fundação Nacional do Índio. A modificação “vem justamente somar à resistência dos povos indígenas para avançar nos processos de reconhecimento de direitos”, esclarece Joenia. 

Atual presidente da Funai é a primeira pessoa de etnia indígena a chefiar a pasta do governo federal (Reprodução/Lohana Chaves/Funai)

‘Missão constitucional’

Hoje, a presidente do órgão comemora a representação indígena em cargos importantes do governo federal. Ela, como integrante da etnia Wapixana, que reúne cerca de 10 mil pessoas vivendo entre Roraima, a Guiana e Venezuela, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), é o próprio reflexo disso. 

“Com a nossa participação, hoje, no governo, seja na Funai ou no Ministério dos Povos Indígenas (MPI), as prioridades seguem o que os povos indígenas já identificaram que é necessário priorizar: recuperar os processos para regularizar as Terras Indígenas (TIs)”, disse. 

Joenia reconhece a decadência da Funai escancarada e refletida em estarrecedores episódios e indicadores de violência contra populações originárias de todo o País – e de seus defensores – nos últimos anos. Nas palavras dela, três termos definem o passado do órgão, especialmente na gestão Bolsonaro: “paralisada, desmontada e sucateada”, enquanto “tinha um papel inverso do que a lei determina que se faça”

A aposta, agora, é na reconstrução, cumprindo uma missão constitucional: “fazer com que as proteções das TIs sejam realizadas e com que a própria Funai seja fortalecida, porque sem os servidores não há como avançar em termos de fiscalização, de proteção, de constituição de grupos de trabalho para reconhecer terra indígena e fazer levantamentos necessários”, garantiu Joenia Wapichana. 

Em 2023, a criação Dia dos Povos Indígenas completa 80 anos, no Brasil (Reprodução/Lohana Chaves/Funai)

“Nós temos que mostrar para os nossos parentes, também, que existem alternativas de desenvolvimento sustentável e não àqueles apenas que prejudicam o meio ambiente ou impactam a vida dos povos indígenas, justamente porque a Funai precisa dar apoio necessário e buscar esse apoio, para desenvolver através das ações sustentáveis dos povos indígenas, os seus planos e o bem viver”, concluiu a presidente da Funai.

‘Sem demarcação não há democracia’

A recriação de ministérios no novo Governo Lula é uma das ações apontadas como cruciais para o desenvolvimento do País nos mais diversos setores nos primeiros 100 dias de gestão, que se passaram. Na área indígena, a Funai destaca a atuação direcionada à crise emergencial do povo Yanomami, além da “retomada dos processos de demarcação e o diálogo com as lideranças”

Como bem lembrou nesta semana a ativista Txai Suruí, não há como falar em democracia sem demarcar Terras Indígenas. Em um vídeo publicado nas redes sociais, a fundadora do Movimento Juventude Indígena de Rondônia lembrou ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) das promessas de campanha feitas por ele.

“Eu não sei se você lembra de mim, mas eu fiz um discurso no seu último ato de campanha”, iniciou a ativista. “Diante de você, eu pedi para que o Brasil escolhesse pela democracia, e hoje eu estou aqui para cobrá-lo publicamente das promessas feitas de demarcação dos nossos territórios (…) pois enquanto as demarcações não acontecem, o nosso povo continua sofrendo, continua sendo ameaçado em conflitos por terra. Alguns de nós estão vivendo em verdadeiras zonas de guerra”, continuou. 

Txai também pediu o fortalecimento da Funai e do Ministério dos Povos Indígenas com prioridade e celeridade. “É um compromisso pela vida e a proteção dos nossos direitos significa a garantia de um futuro possível e um planeta habitável. Não existe democracia sem demarcação dos territórios indígenas”, concluiu Txai Suruí. 

De acordo com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a pasta está trabalhando para homologar 14 territórios em 10 Estados: Aldeia Velha (BA), Kariri Xokó (AL) Potiguara de Monte-Mor (PB), Xucuru-Kariri (AL), Tremembé da Barra do Mundau (CE), Morro dos Cavalos (SC), Rios dos Índios (RS), Toldo Imbu (SC), Cacique Fontoura (MT), Arara do Rio Amônia (AC), Rio Gregório (AC), Uneiuxi (AM), Acapuri de Cima (AM) e Avá Canoeiro (GO).

Hora de avançar

Na avaliação da indigenista, sócia fundadora e coordenadora de projetos da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Ivaneide Bandeira (Neidinha Suruí), os primeiros 100 dias de governo foram melhores que os últimos quatro anos, mas concorda que a demarcação deve acelerar. 

“Eu vejo que depois de passarmos por um processo de quatro anos de destruição, houve agora uma abertura para o diálogo (…) o governo criou um ministério voltado aos povos indígenas e colocou uma mulher indígena na presidência. E em todas as coordenações, inclusive na saúde, temos indígenas no comando”, comemorou a indigenista, em entrevista à CENARIUM.

“Precisamos avançar nas demarcações das terras indígenas”, afirmou. “A gente esperava que nos primeiros 100 dias, o governo demarcasse pelo menos as TIs declaradamente prontas para serem demarcadas. Esperamos que haja um avanço, também, na questão do desenvolvimento sustentável, na melhoria da saúde, na melhoria da educação. No entanto, sabemos que isso leva tempo”, avaliou Neidinha Suruí. 

A sócia fundadora da Kanindé, Ivaneide Bandeira, ao lado do chefe Catarino Sebirop Gavião, na aldeia Ikolen, em Rondônia (Divulgação/Associação Kanindé)

Luta histórica e constante

Quem também avalia de forma positiva os primeiros 100 dias da nova política indigenista brasileira, entretanto com ponderações, é o especialista em Direito Ambiental e Indígena, Ramires Andrade. “Sem dúvidas, avançamos ‘anos-luz’ em relação à situação promovida nos últimos quatro anos. Foram quatro anos de intensos ataques aos povos indígenas e aos territórios indígenas”, disse Ramires à reportagem.

“Percebemos que, definitivamente, o Brasil caminha para um sentido muito próspero em relação à política ambiental e indígena. Estamos muito felizes com a retomada, por exemplo, do Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, que definitivamente passa a ser um ministério do meio ambiente e deixa de ser um puxadinho do Ministério da Agricultura”, apontou o advogado que representa a Associação Kanindé e o Parlamento Indígena Brasileiro. 

Para o especialista Ramires Andrade, houve avanços na nova gestão, mas não se recupera 522 anos de ataques e massacres em 4 anos de governo (Reprodução/Acervo Pessoal)

Ele classifica essa nova realidade como um “grande contraste” com aquilo que se via no “governo extremista de Jair Bolsonaro”. “Talvez a maior demonstração disso é a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a ‘reocupação’ da Funai que, hoje, sim, volta a ser um órgão de política indigenista, ao contrário do que foi na gestão de Marcelo Xavier e Bolsonaro”, afirmou. 

Para a fundadora da Kanindé, não há dúvidas: “O Brasil tem uma dívida histórica com os povos indígenas”“A forma de recuperar pelo menos parte do que se perdeu, porque não há como recuperar tudo, é desenvolver políticas públicas que atendam às necessidades dos povos originários. E para isso é preciso ouvir os indígenas”, destacou Neidinha Suruí.

Além de orçamento adequado, tanto para a Funai quanto para o MPI, é necessário, segunda ela, que o Ministério dos Povos Indígenas não seja de um governo só, “mas que exista no próximo e seja permanente”.

Para Ramires, a largada foi dada. Há desafios, mas estagnação “é passado”, ao menos no atual momento. Ele acredita em grandes e novos avanços até o final do primeiro semestre de 2023, mas observa que o governo não conseguirá superar os últimos 522 anos em único mandato.

“19 de abril não é dia de comemoração, mas um dia em que o movimento indigenista pode celebrar conquistas de lutas. Temos ministério, temos um governo que nos ouve e avanços no judiciário”, finalizou o especialista. 

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