Por que ‘fantasias’ de feminicidas são ‘despercebidas’ por uma sociedade

Em Manaus, tatuador entra “despercebido” em festa com “fantasia” do femicídio de Elisa Samudio (Reprodução/Instagram)
A entrada “despercebida” deum cliente “fantasiado” de feminicida em uma casa noturna de Manaus (AM), que depois viralizou na internet, representa o conceito milenar, inconsciente ou não, de uma sociedade que ainda significa mulheres como coadjuvantes na formação da humanidade e protagonistas em atrapalhar os planos de Deus e dos homens.
Há 11 anos, a carioca Eliza Samudio desapareceu após se tornar uma espécie de “atrapalho” na vida de um atleta que tinha, em tese, uma carreira promissora, o ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes. O corpo dela nunca foi encontrado, mas investigações apontaram que Bruno mandou matá-la depois de Eliza informá-lo que esperava um filho dele. A modelo, segundo a polícia, foi esquartejada, colocada em um saco e entregue como “comida” a cachorros.
Os elementos trágicos envolvendo o desaparecimento de Eliza foram pensados como recursos de entretenimento, na segunda-feira, 1, pelo tatuador de Manaus, Rodrigo Fernandes, de 27 anos, quase a mesma idade do ex-goleiro Bruno, na época do crime em 2010. Com a camisa do Flamengo nominada de “Bruno” e um saco preto identificado de “Eliza”, Rodrigo entrou, “sem ser percebido”, em uma festa à fantasia no lugar conhecido, na capital do Amazonas, como “Porão do Alemão”.
Mas esta não é a primeira vez que homens entram em casas de festas fantasiados com o enredo da morte de Samudio “sem serem percebidos” pelos funcionários do local. Em 2018, dois estudantes participaram de um evento em Inconfidentes (MG), fantasiados do ex-goleiro Bruno e de Luiz Henrique Ferreira Romão, o “Macarrão”, também condenado pela morte de Eliza. Os jovens chamaram os adornos de “Fantasia Raiz”.

O termo é usado na internet para tudo que é “forte” e “original” e reafirma, na realidade, a demonização da mulher que remonta a gênesis da Terra, quando, nos primeiros capítulos da Bíblia, seu escritor atribui a Eva a culpa de ter levado o homem, Adão, ao pecado induzindo-o a comer o fruto proibido do Éden e modificando os planos de Deus.
Historiadores têm a Bíblia e livros históricos provenientes dela como grandes instrumentos que introduziram a opressão contra mulheres na humanidade por meio da prática em desqualificá-la, colocando-a ora em situação de coadjuvante, ora sendo protagonista em atrapalhar os planos divinos.
‘Atrapalho e solução’
A mulher atrapalhou o projeto do poderoso Deus de salvar a humanidade e só a vinda de outro homem para levar a mesma humanidade à redenção. Com a história do Éden, a mulher passou a ser a representação do que se deve ser subjugado em função do “pecado original”. Assim, prosseguiu-se com o genocídio de mulheres que “sabiam demais” na Idade Medieval, chamadas de “bruxas”.
Quando não demonizada, a mulher é exposta, na Bíblia, como objeto de pertencimento ou meio pelo qual se obtém algo. Assim foi com Eva, criada a partir da costela de Adão e citada pela Bíblia como “auxiliar” do homem, que tinha poder sobre tudo o que habitava nos céus e na terra. Assim foi com Maria, usada para reproduzir o plano divino da chegada do redentor, um homem.
Uma análise sem romantismo do livro que representa uma das maiores e mais antigas religiões do mundo, o Cristianismo, é uma forma de mostrar que a sociedade é treinada, desde o ventre, a acreditar que mulheres são seres inferiores aos homens, desde a sua concepção, mas que, hoje em dia, não dá a essa mesma sociedade, o direito sobre as vidas destas. Isso não está “explanado” na Bíblia, não na mesma Bíblia que as amaldiçoou.
Ações dissociáveis com “fantasias despercebidas” do feminicida Bruno Fernandes no Norte e Sudeste do Brasil mostram que a sociedade acredita, inconscientemente, que ele foi “vítima” de uma mulher, talvez uma “bruxa”, que o seduziu e o fez pecar, tirando-o de um caminho promissor e, por isso, ela mereceu a morte e, por isso, sua memória é tão vilipendiada…