‘Faz parte da minha identidade’, declara candidata que recebeu intimação do TRE por usar turbante em foto para urna eletrônica

 ‘Faz parte da minha identidade’, declara candidata que recebeu intimação do TRE por usar turbante em foto para urna eletrônica

Lívia Noronha é candidata a deputada estadual pelo PSOL, no Estado do Pará (Reprodução/Divulgação)

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Priscilla Peixoto – Da Revista Cenarium

MANAUS – “Eu uso turbante desde que eu me entendo como mulher preta. É um símbolo de resistência e uma forma de reafirmar minha identidade”. A frase é da candidata a deputada estadual, no Pará, pelo PSOL, Livia Noronha, que no último dia 18 recebeu uma intimação do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) para mudar a foto usada no registro de candidatura, com a alegação de que a imagem não segue a lei que proíbe a “utilização de elementos cênicos e de outros adornos“.

Ontem, recebi a intimação do TRE querendo barrar minha foto na urna, devido o uso do turbante, que foi considerado um adereço. O turbante é símbolo da nossa resistência, carrega significado, ancestralidade e diz quem somos. Estamos recorrendo, e não permitiremos que o racismo estrutural nos silencie e nos tire o direito a nossa identidade. NÃO VAMOS NOS CALAR! Vai ter preta de turbante na urna, sim“, declarou Lívia nas redes sociais.

À CENARIUM, Lívia contou que foi informada sobre a intimação do TRE durante a inauguração do comitê de uma amiga candidata a deputada federal. O advogado da amiga de Lívia teria comunicado sobre o episódio. “Não fiquei chocada, pois sofremos racismo em espaços onde jamais deveríamos sofrer, mas fiquei muito preocupada com os trâmites, tempo, ter que trocar a foto. Isso representa uma primeira derrota não só para mim, que uso o turbante, mas para todas as mulheres pretas“, lamenta.

Candidata a deputada estadual, no Pará, pelo PSOL, Lívia Noronha (Divulgação)

Tribunal Regional Eleitoral

Segundo o TRE, “a diligência sobre a fotografia da candidata ocorreu por estar em desconformidade com o parâmetro de enquadramento estabelecido pelo Tribunal Superior Eleitoral. A regra determina que a fotografia seja, dentre outras especificações, em enquadramento frontal (busto)”.

O órgão eleitoral acrescenta, ainda, que “assegura às candidatas e candidatos a utilização de indumentária e pintura corporal étnicas ou religiosas, conforme a Resolução do TSE N° 23.609/19″, salienta.

Símbolo político e religioso

Na leitura da atriz e produtora cultural Regina de Benguela, que também é candomblecista, a ação do TRE ofende não somente a candidata Lívia, como a religião e a cultura de um povo.

Quando o TRE a proíbe de usar o turbante, que além de ser um símbolo de sua religião, protege o seu ori e empodera sua identidade negra, eles a ofendem com essa proibição, ofendem uma cultura, ofendem uma luta, ofendem a nossa crença e ofendem a nossa religião, por ser ele o elemento e o elo com a nossa dimensão espiritual. O orgulho corre na veia simbolizando pensamento e fé no Axé“, considera Benguela.

Benguela destaca que, além da proteção, o turbante tem significado simbólico de empoderamento político de negras e negros. Um movimento de afirmação.

Tem pessoas que usam como moda, mas para nós, mulheres negras do Axé, nossa identidade não é moda, não é passageiro. Uso turbante, diariamente, não me vejo sem ele, e uso pela minha religião, sou do candomblé. Turbante é a minha coroa, uso porque sou rainha e esse trono me pertence, nos pertence. E usamos por proteção aos nossos oris (cabeça em yoruba) e por valores. No candomblé, a nossa cabeça é algo que deve ser resguardada, cuidada e ordenada“.

Constatação e racismo institucional

Em publicação na página oficial do PSOL, o partido informa que os advogados da sigla vão entrar com os procedimentos cabíveis e encaminhar contestação à Justiça Eleitoral. “Caso não atenda às exigências do TRE, Lívia Noronha corre o risco de ter a candidatura indeferida. Os advogados do PSOL vão encaminhar contestação à Justiça Eleitoral”, informa o site do partido.

Segundo Lívia, após três dias foram feitas as diligências e, por telefone, o TRE havia informado que o problema, de fato, seria o turbante, porém, na intimação, a causa alegada foi os moldes relacionados às fotos que vão às urnas.

Após toda a repercussão, tivemos uma reposta sobre o problema ser o enquadramento da foto, que não estava de busto, mas já era uma foto de busto. Tanto que usamos a mesma foto, só que com um enquadramento mais fechado e foi aceito”.

Para Lívia, o episódio, além de escancarar o racismo institucional, também revisita o racismo recreativo e religioso. Ela rememora que já sofreu preconceitos em outros espaços da sociedade e atenta para a diferença de tratamento em relação ao gênero.

“Já sofri muitos episódios de racismo ligados aos turbantes, na faculdade, enquanto professora e outros espaços. Infelizmente, é muito comum a gente ouvir piadas que, nada mais são do que racismo recreativo e racismo religioso, também muito presente. No setor político, em relação ao uso do turbante, é a primeira vez. Se fosse um homem usando quipá, por exemplo, seria certamente respeitado, mas como é uma mulher negra, com turbante, a coisa é diferente“, considera.

Racismo Institucional

Segundo a advogada Luciana Santos, que oferece atendimento jurídico focado em diversos tipos de discriminação, e as implicações contidas tanto no âmbito legal, social, imagem de empresas e organizações, caso comprovado que o problema de fato tenha sido o uso de turbante, o episódio pode, sim, configurar racismo institucional.

Se a concepção do tribunal foi de que o turbante era um simples acessório, eles ignoraram toda a importância cultural, identitária e isso pode ser considerado racismo institucional [qualquer sistema de desigualdade que se baseia em raça, que pode ocorrer em instituições como órgãos públicos governamentais, corporações empresariais privadas e universidades (públicas ou particular]”.

Lívia Noronha em evento com apoiadores (Reprodução/Instagram)

Sobre Lívia

Lívia Noronha tem 32 anos, é paraense nascida no município de Ananindeua, região metropolitana de Belém. Atua como professora universitária e possui mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Em 2020, se candidatou à Prefeitura de Ananindeua, ficando em segundo lugar, com 12% dos votos, entrando para a história do município como a primeira mulher negra concorrendo pela vaga na prefeitura e mulher de esquerda mais votada na cidade.

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