‘Veneza da Amazônia’ tem engarrafamento de canoas e cemitério submerso

As ruas da cidade ficam tomadas principalmente por canoas e botes (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium) As ruas da cidade ficam tomadas principalmente por canoas e botes (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
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Matheus Pereira – Da Revista Cenarium
ANAMÃ – Distante a 209 quilômetros de Manaus, o município de Anamã, no Amazonas, lida todos os anos com a subida das águas dos rios de forma extrema, tendo em vista que, nas grandes cheias, a cidade toda fica inundada. Conhecida como a Veneza da Amazônia, como a própria placa de boas-vindas diz, a cidade de 13,9 mil habitantes já aprendeu a viver com a subida das águas do rio Solimões, com seus habitantes adaptando-se em tudo que envolve suas rotinas, principalmente no transporte.
A nova realidade promove até ‘engarrafamento de canoas’ na entrada principal da cidade, além do cemitério da cidade que fica completamente submerso. A população, que antes da subida das águas se locomovia por meio de motos, carros e bicicletas, agora utiliza botes, canoas e as tradicionais rabetas, uma espécie de canoa motorizada, típica da região amazônica. Quem antes poderia transitar a pé, durante a cheia, se não quiser molhar boa parte do corpo, depende de um desses meios de transporte fluviais e de catraieiros (ou canoeiros) que fazem o transporte de pessoas e também de mercadorias.
Um desses catraieiros é Alan Silva, que em tempos de seca também vive do transporte de passageiros, já que é mototaxista. Silva conta que, quando a cheia começa, ele “pendura” a sua motocicleta e coloca em ação o bote motorizado usado na atividade. O anamaense conta ainda porque prefere a época da cheia.
“Quando enche, é preciso ir atrás de outra coisa para fazer para comprar o que comer. E aí muda o estilo de transporte e é até melhor, porque ganhamos mais. Então para mim é melhor, porque na cheia é cinco reais a corrida e de mototáxi é três. Mas a cheia é difícil, quando a pessoa não tem um bote ou uma canoa, quando tem fica mais fácil, porque a maior dificuldade é o transporte”, revelou.

Do feirante ao coletor de lixo
Sem utilidade para transitar na cidade, as motos e os carros passam a ficar parados e até pendurados em algumas áreas da cidade para fugir da água. O vigilante Flávio Nascimento conta que além dos meios de transporte, os móveis também precisam ser suspensos para fugir da água. “Todo ano fazemos a mesma coisa. Quando enche, suspendemos as coisas tanto dentro quanto fora de casa e este ano acho que vamos ter de suspender bem mais, pelo que vemos das outras enchentes, neste período a água está mais baixa e a deste ano está bem avançada”, acrescentou.
Para sobreviver e ter o que comer, é preciso recorrer aos veículos aquáticos e para manter a cidade limpa e controlada também. Com a cheia, os caminhões de coleta de lixo dão lugar aos botes. Além disso, as viaturas policiais convencionais saem de cena e os militares passam a operar em lanchas para poder circular pela cidade e manter a ordem.
Parque aquático no quintal de casa
As ruas aquáticas que literalmente passam na porta de casa, além de obrigarem as pessoas a mudar a forma de se locomover, proporcionam às crianças e até aos adultos uma opção a mais de diversão. Com a água alta, o quintal e a frente das casas se transformam em um parque aquático, mesmo que em algumas regiões a água aparentemente não seja das melhores para banho.
Mas não é só na porta de casa que há diversão, as crianças e adolescentes navegam pela cidade em busca de aventuras. E um desses pontos é bem próximo a uma sumaúma centenária, que pode ser vista de vários pontos da cidade. Por lá, os jovens fazem a festa em saltos e mergulhos de dar inveja a um atleta olímpico. Por falar nisso, em outro ponto da cidade, a criançada transforma uma construção de madeira em um trampolim para pular e aproveitar a água que consome o município.

Não há terra para futebol nem enterros
Como dito, não tem uma área na cidade que escape das águas do Solimões. Espaços para prática de esportes, como quadras poliesportivas e campos de futebol agora mais parecem lagos. Para se ter noção do nível que a cheia atinge, a água está quase cobrindo as traves de um campo de futebol completamente. O que antes servia para fazer gols, hoje é apenas um detalhe na imensidão de água.
Um dos cemitérios da cidade, que não é mais o único justamente pelo fato de que não havia condições de realizar enterros na época da cheia, fica completamente tomado pela água. As cruzes que marcam o local onde estão os corpos daqueles que já se foram ficam só com uma parte para fora da água. Matar a saudade de um ente querido em tempos de cheia só mesmo chegando de canoa, caso o local não tenha sido coberto pelo Solimões.

Onde há água, há peixe
O comerciante Francisco Silva conta que a cheia dificulta a vida de muita gente e as vendas têm uma queda, afinal, nem todo mundo tem condições de sair de casa. Há quem não possua um veículo fluvial próximo e nem poder aquisitivo para pagar um canoeiro. Seu Chico, como é carinhosamente chamado pela família, revela que, apesar de a cheia trazer dificuldades, há também os benefícios.
“O lado bom de tudo isso é que fica muito farto. Aqui o cara compra peixe, porque quer, porque entrou no igapó, onde jogar a tramoia (espécie de rede usada na pesca) pega peixe. É bom demais”, celebrou.