O linchamento virtual de mulheres no submundo da internet

 O linchamento virtual de mulheres no submundo da internet

As informações da vida pessoal da estudante foram vazadas por grupos antagônicos ao prefeito (Divulgação)

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Por Paula Litaiff*

Nas últimas 48 horas, Manaus (AM) passa por um surto coletivo de compartilhamentos virtuais, com ataques a uma mulher de 27 anos, estudante universitária, sem origem social nobre, que aceitou casar-se com o prefeito, cristão evangélico, 27 anos mais velho e pertencente a uma família conservadora.

O motivo do linchamento virtual contra a estudante provém do pensamento patriarcal de que ela não atende aos “critérios” do perfil para uma primeira-dama, por não ser oriunda de uma família tradicional e por ter histórico de relacionamentos com outros homens.

As informações da vida pessoal da estudante foram vazadas por grupos antagônicos ao prefeito, com interesses pessoais e eleitorais. Vereadores oposicionistas debocharam  da estudante, reduzindo a mulher a um ser de “segunda categoria”, com o uso de termos repulsivos.

A escritora e filósofa Márcia Tiburi, vítima de crimes digitais que a levaram a deixar o Brasil, afirma que a internet representa hoje a “caça às bruxas” da Idade Média (476 a 1453), em entrevista concedida à Marie Claire.

Fogueira cibernética  

“Destruir mulheres faz parte da História. Se a fogueira era a tecnologia do século 15, a internet é a fogueira do século 21. Naquela época, queimavam-se os corpos; hoje queimam-se as imagens, porque vivemos num tempo em que ela é o grande capital”, pontuou Tiburi.

Para a escritora, a internet virou um tribunal sem lei instaurado nas redes sociais. Reputações são destruídas em ataques de velocidades sem precedentes. Nesse processo, basta um disparo para que os internautas ampliem a agressão a níveis incontroláveis.

O que levam pessoas de todos os gêneros a reforçarem o preconceito contra mulheres que não atendem a determinados padrões? O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), que se dedicou a pesquisar a violência simbólica, explica que o conceito refere-se à maneira como as estruturas de poder e dominação operam por meio da imposição de valores, normas e crenças.

Esse ideal perpetua a desigualdade e mantém as hierarquias sociais, tudo isso de forma simbólica e muitas vezes imperceptível. O processo ocorre mesmo que esses valores beneficiem apenas determinados grupos ou classes sociais. Isso cria uma ordem social que favorece os interesses dos grupos dominantes que oprimem dominados. As mulheres são, historicamente, as maiores vítimas.

Violência de gênero

Estudiosos apontam que a caracterização da violência de gênero ocorre quando existe a agressão simbólica, psicológica, física ou sexual contra alguém em situação de vulnerabilidade, essencialmente, pela sua condição.  

No caso da estudante universitária de Manaus que teve a sua vida exposta por ter tido relações com outros homens antes do companheiro atual, se ela fosse um homem, os ataques não ocorreriam. Ele seria rotulado de “conquistador”.

Para a pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Iraildes Caldas Torres,  as relações de gênero são disfarçadas de relações de poder e, consequentemente, a iminente “ameaça do outro e da possibilidade de perda de espaço.”

Envolvidos pelo risco da ameaça da perda de domínios territorial e social, homens (e mulheres condicionadas pelo patriarcado) tendem a desenvolver fatores determinantes para a violência simbólica. “A possibilidade de perda de espaço e de hegemonia levaram os homens a construírem os fundamentos para as desigualdades”, diz Iraildes.

O combate à violência de gênero e ao pensamento medieval de que mulheres precisam seguir padrões para serem aceitas pela sociedade devem ser debatidos por jornalistas profissionais. Chegou a hora dos órgãos de polícia repelirem criminalmente quem compartilha preconceito e fecharem o cerco contra os “abutres de notícias” que disseminam violência, misoginia e ignorância na internet.

(*) Paula Litaiff é jornalista, especialista em Gestão Social: Políticas Públicas e Defesa de Direitos, mestranda em Sociedade e Cultura da Amazônia pela Ufam e diretora executiva da Revista e Agência Cenarium

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